"Antes de diagnosticar a si mesmo
com depressão ou baixa autoestima, primeiro tenha certeza de que você não está,
de fato, cercado por idiotas." – Freud
Raramente acontece de conhecermos uma
pessoa que é compatível com nossas ideias, na maioria das vezes só toleramos os
outros, mas quando acontece de encontrarmos outro tão insano é um prazer que
podemos classificar como um dos elementos da felicidade.
Durante dois anos trabalhei com uma
professora, não conversávamos, nenhuma intimidade ou conhecimento existia, a
única coisa que eu sabia é que ela era barraqueira, dessas que dá show por onde
passa e todos consideram insana, por todos os lados, tanto dos alunos quanto dos
funcionários, ela era aquela que faltava muito; aos poucos deixei que isso
virasse apenas o retrato de alguém insano e irresponsável que trabalhava no
mesmo lugar, embora eu sempre tenha admirado os irresponsáveis e os loucos; não
tínhamos liberdade para conversar, mundos diferentes.
Não sei quando, mas acredito que o
culpada tenha sido a uma rede social, centenas de pessoas são adicionadas aos
amigos e descartadas todos os anos, eu pelo menos não sou tolerante com certas
diferenças, falou merda já elimino, sim, sou um pouco culpado nesta sociedade
líquida, é a vida; aos poucos nos tornamos amigos virtuais mesmo trabalhando no
mesmo lugar, os assuntos rapidamente foram se tornando iguais, a afinidade
surgiu e foi incrível, gostávamos de arte, filosofia, cinema, literatura,
política, e principalmente de cutucar o senso comum e provocar as pessoas ao
nosso redor, não que façamos de propósito, mas somos pessoas complicadas,
polêmicas por natureza, e compreendi todas aquelas coisas que falavam dela,
muitas eram até verdade, era barraqueira mesmo, faltava bastante, dava show por
onde passava, isso era inegável, mas era tudo natural, comecei a achar que a
mulher era mesmo incompreendida, hoje isso é certo em minha cabeça, é difícil
carregar tanto conhecimento sem que isso se torne um problema, era impulsiva, o
que ajudava em todos os shows. Só percebi um pequeno detalhe que talvez fosse
inconsciente de muitos ao redor dela, sempre que ela saía do controle,
indignada com a situação das coisas, a história aumentava e aquilo ganhava
proporções gigantescas, hoje vejo que isso não era defeito dela, mas dos
outros, é natural que em um lugar onde todo mundo têm rabo preso ou esconde
seus impulsos e distúrbios por traz de rostos felizes, sempre aumentem o drama
dos impulsivos para que isso vire a política do “pão e circo”, ela vira assunto
e todos os outros assuntos importantes ficam esquecidos e vão para baixo do
tapete. Hoje vejo assim, mas não sou mais imparcial, com orgulho posso dizer
que ela é minha amiga, se tornou uma boa amiga, talvez a pessoa mais parecida
comigo que já conheci nesta vida.
Também já surtei, tenho um passado de
grandes desastres, causei muita dor, nada criminoso, mas já feri muita gente
por minha impulsividade, e mais importante, já entrei em crises de quase me
matar por conta da sensibilidade extrema, que podemos considerar como defeito. Ela
também é assim, mesmo em nossas conversas mais secretas, quando falamos de
nossos desafetos, nunca condenamos alguém, sempre admitimos nossa parcela de
culpa e continuamos sentindo grande afeto por eles. Essa professora é uma
pessoa boa, não importa o que pensem e nem o que falem sobre ela, se já tiveram
atritos e coisas parecidas, eu sei que ela gosta de todo mundo, mesmo ressentida
ou desregulada. Posso me identificar com isso, mas posso me identificar
principalmente por nossas crises depressivas, ela é a rainha disso, confesso
que perto da mulher sou peixe pequeno, muitas vezes nossas personalidades se
confundem, parece aquele filme “Persona”, as dores embora ambientadas de formas
diferentes, são as mesmas e nos levam aos mesmos dilemas. Aos poucos nos
conhecemos, agora não existe estranhamento algum quando ela fala qualquer
coisa, é como se eu fosse ela, e quando eu reclamo ou choro nos ombros dela, é
como se ela sentisse minha dor. Somos pessoas complicadas, mas dentro de toda
complicação é bom sabermos que temos um amigo fiel que realmente nos entende.
Essa introdução foi apenas a parte
sentimental e como funciona nossa amizade, é algo mais complexo que isso, não
existe pudor, isso não significa que somos pervertidos, falamos de coisas
quentes de forma técnica e banal, porque vemos a vida de forma mais simples,
somos complicados enxergando a vida sem tabus. O maior presente dentro disso
tudo foi perceber que tinha uma pessoa inteligente para conversar, conheço pessoas
inteligentes, cada uma em seu grau e limitação, mas essa professora é algo fora
de série, posso falar de música, cinema, pintura, literatura, história,
filosofia, absolutamente tudo, futebol, novela, animais e até questionar
religiões e outras convenções, é incrível, não existe limites, não existe “Não
me toques” em matéria de assuntos, e ela não é aquela que “se vira” no assunto,
ela é aquela que tem informações específicas, ou seja, que sabe o que está
dizendo. Nunca encontrei alguém assim, ela é provavelmente a pessoa mais inteligente
que já conheci, não quero desmerecer outras pessoas, mas ela é completa, e
mesmo que não saiba algo, é na troca de informações que ela aprende e depois já
sabe, não é preguiçosa, isso é difícil de encontrar.
A vida só traz ironias interessantes,
logo que nos tornamos amigos, depois de um ano trabalhando juntos, passamos
poucos meses conversando e afinando nossa amizade, entramos em férias, durante
isso ela “saiu do trabalho”, não trabalhamos mais juntos, e pior, ficou
realmente doente, muito doente, e não falo de doença mental, porque ela e eu
temos alguns distúrbios que nos impedem de ter um bom relacionamento em
sociedade, falo de doença física mesmo, algo realmente feio, só não vou descrever
porque o texto é sobre a importância desta mulher e não da tragédia de uma
doença idiota.
A sensação que tenho é que ela é um
cometa, essas pessoas que aparecem em nossa vida a cada dez mil anos, e alguém
que posso dizer que é realmente única; mesmo entre nossos amigos temos que
admitir que muitos se parecem com muita gente por aí, mas ela é extremamente
singular, pelo menos nunca vi outra assim. É o tipo de pessoa que é difícil de
encarar, difícil de lidar, você pode levar uma bofetada, mas se você entra em
sintonia, então não há prazer maior, passa a dar razão para a fera, eu pelo
menos dou, e não é querendo me gabar, tenho orgulho de ser considerado um amigo
por ela. O que eu gostaria que as pessoas vissem é como uma pessoa tão
complicada quanto ela consegue ser a mais doce e simples criatura, não falo de
simplicidade banal, falo que para ela as coisas são simples, consegue passar
por cima de temas espinhosos, mas por ter uma visão diferenciada, mais prática,
sem rodeios, acaba entrando em conflito com o mundo e aí os terremotos
realmente acontecem e o simples se torna tempestivo.
Sempre tive amizade com mulheres mais
velhas, poucas duraram, mas nenhuma com essa intensidade, ela é quase um
desafio mental... Eu me sinto influenciado, sempre fui difícil e causei terremotos,
mas depois dela fiquei mais descontrolado, não seguro minhas emoções, não tenho
vergonha disso, é muito ruim se privar do que somos, a sociedade faz isso o
tempo todo com a gente, ela me permite, permite que eu seja eu, isso é raro, e
acredito que a qualidade do bom amigo é esta: aceitar você por inteiro, doido,
alegre, insano, quebrado... Inteiro.
Poderia chamar nossa amizade de suicida,
fica mais complexo quando entramos no quesito da fé, ela é espírita ou
simpatizante, mas está aberta aos diversos tipos de críticas, até àquilo que
acredita; eu sou ateu e não creio em absolutamente nada, mesmo assim ela não se
torna chata, nem eu me sinto insultado, a espiritualidade dela é diferente, a
mulher inventou um novo jeito de ver as coisas, isso é raro, muito raro. Conheço
pessoas que também são espíritas, mas durante uma simples conversa sobre a
vida, se é que uma conversa sobre a vida pode ser simples, começam a destilar a
única coisa que sabem, suas crenças, e não conseguem se desvencilhar disso... Essa
professora é diferente, entende como o mundo funciona, percebo que ela crê, que
acredita em algo diferente, mas ela não nega o que já foi descoberto, ela
conhece muita coisa, respeita todas as crenças e principalmente a minha
descrença, como falei, nossa amizade parece “Persona”, muitas vezes me pego
entrando no mundo da espiritualidade dela enquanto ela navega por minha descrença,
simplesmente não sei quem é quem, isso nunca me aconteceu em nenhum
relacionamento. Volto ao quesito da amizade suicida, por eu ser descrente, e
odiarmos toda falsidade ou frescura das convenções sociais, sim, somos quase
dois House’s da vida, quando ela ficou doente foi estranho, simplesmente não vi
necessidade de tratá-la como doente ou desejar qualquer coisa “espiritual”,
soaria falso, ela me conhece tão bem que não posso insultá-la sendo falso em um
momento como este, pelo contrário, falei que não a trataria como doente e que
ela doente é mais lúcida ou vale mais do que muita gente saudável, e isso não
foi para agradar, isso foi a mais pura verdade, e acreditem, consigo ser cruel
com pessoas doentes, ela não merece crueldade e nem falsidade, merece ser ela
em todo potencial, e com isso merece que eu seja eu em todo meu potencial. O problema
é que ela está realmente doente, fico triste, mas sou tão desregulado que por
vezes esqueço, mando mensagens ou ligo e ignoro este “detalhe” da doença
maligna e cruel, para debater sobre filmes, literatura e nossas filosofias de
vida, ela gemendo do outro lado e eu debatendo um tratado sobre qualquer coisa,
e sabe do mais incrível? Ela participa e continua contribuindo com ideias
sempre pertinentes e seu olhar afiado e único do mundo. Não sei o que isso
significa, deve significar algo bom, realmente bom, gosto de conversar com ela,
mas é algo diferente; vou até piorar a situação, já falei que sou descontrolado,
depressivo e tudo mais, tenho minhas crises como ela tem as dela, durante a
madrugada e qualquer hora do dia, e às vezes ignoro tudo sobre a doença, ligo
ou mando minhas mensagens chorando sobre a vida, querendo morrer ou
entusiasmado por algo que estou criando, em crise chorando e precisando de um
ombro amigo, sei que é irresponsabilidade, mas ela dá um ombro amigo, mesmo que
o ombro esteja um pouco pálido e fraco.
A verdade é que ela faz falta, realmente
muita falta, nossa comunicação está pequena, mesmo intensa quando acontece, eu
entendo, ela está em tratamento, mas os dias são solitários sem a presença incessante
dela, devo confessar que no começo achei que era uma maníaca que tinha “colado
na minha”, talvez até fosse mesmo, mas o tempo me fez dependente dela e virei
um maníaco que está “colado na dela”, afinal, onde mais encontraria tal
criatura? Gosto muito dela, é um carinho imenso.
Entramos em um nível diferente de
amizade, é uma liberdade, fraternidade e humanidade sem limites, que espero
nunca perder, não sei direito o que todo esse texto significa, mas acho que ela
merece ser imortalizada, porque é como falei, alguém como ela é como um cometa
que só aparece a cada dez mil anos.
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