segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

03/02/2014 - Perfil de Uma Doida, Insana e Descontrolada: Ana Glaucia.

"Antes de diagnosticar a si mesmo com depressão ou baixa autoestima, primeiro tenha certeza de que você não está, de fato, cercado por idiotas." – Freud

Raramente acontece de conhecermos uma pessoa que é compatível com nossas ideias, na maioria das vezes só toleramos os outros, mas quando acontece de encontrarmos outro tão insano é um prazer que podemos classificar como um dos elementos da felicidade.
Durante dois anos trabalhei com uma professora, não conversávamos, nenhuma intimidade ou conhecimento existia, a única coisa que eu sabia é que ela era barraqueira, dessas que dá show por onde passa e todos consideram insana, por todos os lados, tanto dos alunos quanto dos funcionários, ela era aquela que faltava muito; aos poucos deixei que isso virasse apenas o retrato de alguém insano e irresponsável que trabalhava no mesmo lugar, embora eu sempre tenha admirado os irresponsáveis e os loucos; não tínhamos liberdade para conversar, mundos diferentes.
Não sei quando, mas acredito que o culpada tenha sido a uma rede social, centenas de pessoas são adicionadas aos amigos e descartadas todos os anos, eu pelo menos não sou tolerante com certas diferenças, falou merda já elimino, sim, sou um pouco culpado nesta sociedade líquida, é a vida; aos poucos nos tornamos amigos virtuais mesmo trabalhando no mesmo lugar, os assuntos rapidamente foram se tornando iguais, a afinidade surgiu e foi incrível, gostávamos de arte, filosofia, cinema, literatura, política, e principalmente de cutucar o senso comum e provocar as pessoas ao nosso redor, não que façamos de propósito, mas somos pessoas complicadas, polêmicas por natureza, e compreendi todas aquelas coisas que falavam dela, muitas eram até verdade, era barraqueira mesmo, faltava bastante, dava show por onde passava, isso era inegável, mas era tudo natural, comecei a achar que a mulher era mesmo incompreendida, hoje isso é certo em minha cabeça, é difícil carregar tanto conhecimento sem que isso se torne um problema, era impulsiva, o que ajudava em todos os shows. Só percebi um pequeno detalhe que talvez fosse inconsciente de muitos ao redor dela, sempre que ela saía do controle, indignada com a situação das coisas, a história aumentava e aquilo ganhava proporções gigantescas, hoje vejo que isso não era defeito dela, mas dos outros, é natural que em um lugar onde todo mundo têm rabo preso ou esconde seus impulsos e distúrbios por traz de rostos felizes, sempre aumentem o drama dos impulsivos para que isso vire a política do “pão e circo”, ela vira assunto e todos os outros assuntos importantes ficam esquecidos e vão para baixo do tapete. Hoje vejo assim, mas não sou mais imparcial, com orgulho posso dizer que ela é minha amiga, se tornou uma boa amiga, talvez a pessoa mais parecida comigo que já conheci nesta vida.
Também já surtei, tenho um passado de grandes desastres, causei muita dor, nada criminoso, mas já feri muita gente por minha impulsividade, e mais importante, já entrei em crises de quase me matar por conta da sensibilidade extrema, que podemos considerar como defeito. Ela também é assim, mesmo em nossas conversas mais secretas, quando falamos de nossos desafetos, nunca condenamos alguém, sempre admitimos nossa parcela de culpa e continuamos sentindo grande afeto por eles. Essa professora é uma pessoa boa, não importa o que pensem e nem o que falem sobre ela, se já tiveram atritos e coisas parecidas, eu sei que ela gosta de todo mundo, mesmo ressentida ou desregulada. Posso me identificar com isso, mas posso me identificar principalmente por nossas crises depressivas, ela é a rainha disso, confesso que perto da mulher sou peixe pequeno, muitas vezes nossas personalidades se confundem, parece aquele filme “Persona”, as dores embora ambientadas de formas diferentes, são as mesmas e nos levam aos mesmos dilemas. Aos poucos nos conhecemos, agora não existe estranhamento algum quando ela fala qualquer coisa, é como se eu fosse ela, e quando eu reclamo ou choro nos ombros dela, é como se ela sentisse minha dor. Somos pessoas complicadas, mas dentro de toda complicação é bom sabermos que temos um amigo fiel que realmente nos entende.
Essa introdução foi apenas a parte sentimental e como funciona nossa amizade, é algo mais complexo que isso, não existe pudor, isso não significa que somos pervertidos, falamos de coisas quentes de forma técnica e banal, porque vemos a vida de forma mais simples, somos complicados enxergando a vida sem tabus. O maior presente dentro disso tudo foi perceber que tinha uma pessoa inteligente para conversar, conheço pessoas inteligentes, cada uma em seu grau e limitação, mas essa professora é algo fora de série, posso falar de música, cinema, pintura, literatura, história, filosofia, absolutamente tudo, futebol, novela, animais e até questionar religiões e outras convenções, é incrível, não existe limites, não existe “Não me toques” em matéria de assuntos, e ela não é aquela que “se vira” no assunto, ela é aquela que tem informações específicas, ou seja, que sabe o que está dizendo. Nunca encontrei alguém assim, ela é provavelmente a pessoa mais inteligente que já conheci, não quero desmerecer outras pessoas, mas ela é completa, e mesmo que não saiba algo, é na troca de informações que ela aprende e depois já sabe, não é preguiçosa, isso é difícil de encontrar.
A vida só traz ironias interessantes, logo que nos tornamos amigos, depois de um ano trabalhando juntos, passamos poucos meses conversando e afinando nossa amizade, entramos em férias, durante isso ela “saiu do trabalho”, não trabalhamos mais juntos, e pior, ficou realmente doente, muito doente, e não falo de doença mental, porque ela e eu temos alguns distúrbios que nos impedem de ter um bom relacionamento em sociedade, falo de doença física mesmo, algo realmente feio, só não vou descrever porque o texto é sobre a importância desta mulher e não da tragédia de uma doença idiota.
A sensação que tenho é que ela é um cometa, essas pessoas que aparecem em nossa vida a cada dez mil anos, e alguém que posso dizer que é realmente única; mesmo entre nossos amigos temos que admitir que muitos se parecem com muita gente por aí, mas ela é extremamente singular, pelo menos nunca vi outra assim. É o tipo de pessoa que é difícil de encarar, difícil de lidar, você pode levar uma bofetada, mas se você entra em sintonia, então não há prazer maior, passa a dar razão para a fera, eu pelo menos dou, e não é querendo me gabar, tenho orgulho de ser considerado um amigo por ela. O que eu gostaria que as pessoas vissem é como uma pessoa tão complicada quanto ela consegue ser a mais doce e simples criatura, não falo de simplicidade banal, falo que para ela as coisas são simples, consegue passar por cima de temas espinhosos, mas por ter uma visão diferenciada, mais prática, sem rodeios, acaba entrando em conflito com o mundo e aí os terremotos realmente acontecem e o simples se torna tempestivo.
Sempre tive amizade com mulheres mais velhas, poucas duraram, mas nenhuma com essa intensidade, ela é quase um desafio mental... Eu me sinto influenciado, sempre fui difícil e causei terremotos, mas depois dela fiquei mais descontrolado, não seguro minhas emoções, não tenho vergonha disso, é muito ruim se privar do que somos, a sociedade faz isso o tempo todo com a gente, ela me permite, permite que eu seja eu, isso é raro, e acredito que a qualidade do bom amigo é esta: aceitar você por inteiro, doido, alegre, insano, quebrado... Inteiro.
Poderia chamar nossa amizade de suicida, fica mais complexo quando entramos no quesito da fé, ela é espírita ou simpatizante, mas está aberta aos diversos tipos de críticas, até àquilo que acredita; eu sou ateu e não creio em absolutamente nada, mesmo assim ela não se torna chata, nem eu me sinto insultado, a espiritualidade dela é diferente, a mulher inventou um novo jeito de ver as coisas, isso é raro, muito raro. Conheço pessoas que também são espíritas, mas durante uma simples conversa sobre a vida, se é que uma conversa sobre a vida pode ser simples, começam a destilar a única coisa que sabem, suas crenças, e não conseguem se desvencilhar disso... Essa professora é diferente, entende como o mundo funciona, percebo que ela crê, que acredita em algo diferente, mas ela não nega o que já foi descoberto, ela conhece muita coisa, respeita todas as crenças e principalmente a minha descrença, como falei, nossa amizade parece “Persona”, muitas vezes me pego entrando no mundo da espiritualidade dela enquanto ela navega por minha descrença, simplesmente não sei quem é quem, isso nunca me aconteceu em nenhum relacionamento. Volto ao quesito da amizade suicida, por eu ser descrente, e odiarmos toda falsidade ou frescura das convenções sociais, sim, somos quase dois House’s da vida, quando ela ficou doente foi estranho, simplesmente não vi necessidade de tratá-la como doente ou desejar qualquer coisa “espiritual”, soaria falso, ela me conhece tão bem que não posso insultá-la sendo falso em um momento como este, pelo contrário, falei que não a trataria como doente e que ela doente é mais lúcida ou vale mais do que muita gente saudável, e isso não foi para agradar, isso foi a mais pura verdade, e acreditem, consigo ser cruel com pessoas doentes, ela não merece crueldade e nem falsidade, merece ser ela em todo potencial, e com isso merece que eu seja eu em todo meu potencial. O problema é que ela está realmente doente, fico triste, mas sou tão desregulado que por vezes esqueço, mando mensagens ou ligo e ignoro este “detalhe” da doença maligna e cruel, para debater sobre filmes, literatura e nossas filosofias de vida, ela gemendo do outro lado e eu debatendo um tratado sobre qualquer coisa, e sabe do mais incrível? Ela participa e continua contribuindo com ideias sempre pertinentes e seu olhar afiado e único do mundo. Não sei o que isso significa, deve significar algo bom, realmente bom, gosto de conversar com ela, mas é algo diferente; vou até piorar a situação, já falei que sou descontrolado, depressivo e tudo mais, tenho minhas crises como ela tem as dela, durante a madrugada e qualquer hora do dia, e às vezes ignoro tudo sobre a doença, ligo ou mando minhas mensagens chorando sobre a vida, querendo morrer ou entusiasmado por algo que estou criando, em crise chorando e precisando de um ombro amigo, sei que é irresponsabilidade, mas ela dá um ombro amigo, mesmo que o ombro esteja um pouco pálido e fraco.
A verdade é que ela faz falta, realmente muita falta, nossa comunicação está pequena, mesmo intensa quando acontece, eu entendo, ela está em tratamento, mas os dias são solitários sem a presença incessante dela, devo confessar que no começo achei que era uma maníaca que tinha “colado na minha”, talvez até fosse mesmo, mas o tempo me fez dependente dela e virei um maníaco que está “colado na dela”, afinal, onde mais encontraria tal criatura? Gosto muito dela, é um carinho imenso.

Entramos em um nível diferente de amizade, é uma liberdade, fraternidade e humanidade sem limites, que espero nunca perder, não sei direito o que todo esse texto significa, mas acho que ela merece ser imortalizada, porque é como falei, alguém como ela é como um cometa que só aparece a cada dez mil anos.

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